segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

A obra ou o artista?

Acerca do “mundo da arte” como instância legitimadora do estatuto artístico das obras de arte, lembro uma notícia do jornal Público de 22.10.2010:

Cerca de 120 caixas de sabão Brillo tidas como obras do artista pop norte-americano Andy Warhol são afinal cópias.




O que confere, afinal, o estatuto de obra de arte a estas caixas perceptivamente indiscerníveis das caixas de sabão originais? Uma hipótese é pensar que estas caixas, enquadradas num contexto social adequado – expostas num museu, por exemplo – conseguem alertar o público para qualidades estéticas até então descuradas ou estimular um tipo de pensamento mais aprofundado. No fundo, convidam a um olhar diferente, uma espécie de transfiguração do modo de ver, sentir e pensar. Outra hipótese é pensar que foram feitas para comentar ironicamente justamente esta mesma ideia de que algo pode ganhar propriedades estéticas só por ser colocado num expositor.

Supostamente, uma configuração de critérios desta ou doutra natureza permitiu que uma qualquer instância do “mundo da arte” tivesse outorgado às caixas de Warhol o estatuto de obras de arte. Um derivado desse estatuto foi o seu valor monetário de milhares de dólares - ainda na notícia do Público: “uma Brillo Box original foi vendida por 542 mil dólares (389 mil euros ao câmbio actual)". Quaisquer que tenham sido os critérios de valorização das qualidades estéticas da obra, foram estes, seguramente, os responsáveis cardeais do valor artístico da obra e, consequentemente, o seu preço milionário deve ter tido uma relação com esse valor artístico.

As cópias das caixas Brillo são afinal indistinguíveis das “verdadeiras”. Antes de se descobrir que são falsas, funcionavam aparentemente tal como a obra original: desde que se pensasse nelas como obras de Warhol, o seu conteúdo representacional era evocado da mesmíssima forma. O mesmo podemos afirmar das qualidades estéticas que possivelmente exemplificariam. Será que descoberta a fraude, esse conteúdo representacional desaparece? Desaparecem as putativas qualidades estéticas? Que aconteceu àqueles objectos, afinal, para que o seu preço de milhares de doláres se tenha reduzido a nada?

Queremos acreditar que os critérios de atribuição do estatuto, bem com os justificativos do seu valor estético, funcionaram como fundamento do preço da obra. Não se percebe em que medida estes critérios deixaram de funcionar. Tudo o que mudou foram as crenças das pessoas, de que o autor da obra não é A, mas afinal B. Mas se o valor artístico supostamente mudou, então conclui-se que o estatuto artístico é absolutamente determinado pelo estatuto do autor. Não tem qualquer relação com quaisquer propriedades da obra. Isto é estranho. Começamos por dizer que o relevante para justificar o estatuto artístico da obra seria indagar sobre essas qualidades, e concluímos agora que essas mesmas qualidades são irrelevantes. Se se vier a descobrir que afinal estas caixas não são cópias, elas recuperam o seu valor - como por magia. No caso, não é o artista que vale pela obra, mas a obra que vale pelo artista.

Uma hipótese é reformular a ideia inicial de que o valor monetário se funda no valor artístico. Uma coisa parece certa: o valor artístico é independente do valor monetário. A existir, é independente de haver a prática social de as pessoas pagarem imenso dinheiro por certos objectos. Mas mudando o sentido desta relação, neste caso, parece que o valor monetário vive de mecanismos de mercado que passam ao lado deste tipo de discussões estéticas ou ontológicas. Talvez se tentássemos vender objectos pessoais não artísticos de Warhol conseguíssemos bom dinheiro, sem precisar de nenhum estatuto legitimador.

As teorias que procuram definir a arte com base no contexto social em que o objecto se insere, em vez de em propriedades intrínsecas desse mesmo objecto, como a teoria institucional de George Dickie, acabam neste círculo vicioso: o que é uma obra de arte? É o que o “mundo da arte” define como tal. O que é o “mundo da arte”? É o contexto social que permite a existência e o desenvolvimento das obras de arte. Andamos às voltas, e ficamos na mesma. O que faz o “mundo da arte” ser “da arte” em vez de outra coisa qualquer? De onde é que as instituições do mundo da arte retiram a sua natureza de instituições da arte, por contraste com todas as outras instituições?

Na última aula, o Professor perguntava “O que é a música”? Penso que, por mais quixotesco que pareça, é sempre melhor procurar critérios ou razões objectivas que preencham o conceito do que este tipo de abordagem puramente sociológica que reduz o conceito às determinações do “mundo da arte” (os teatros de ópera, as salas de concerto, os críticos, a literatura de especialidade, os próprios músicos, etc). Se essas determinações não são arbitrárias, o que importa saber é o que as justitica.



Tiago Sousa
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