"A música é uma das formas mais eficientes de preparar a audiência e de reforçar pontos que tu queres impor. O correcto uso de música, e isso inclui o não uso de música, é uma das grandes armas que um realizador tem ao seu dispor." Stanley Kubrick
Nos dias que correm, será
difícil encontrar alguém que nunca terá ouvido falar de "2001: A Space
Odyssey". O célebre filme do realizador americano Stanley Kubrick,
estreado em 1968, para além de uma obra-prima, é um dos mais belos exemplos de
como obras de arte distintas são capazes de se complementar e elevar
mutuamente, partilhando essências e aspirações que, quando aliadas, se tornam
capazes de conceder a simples momentos, a ascensão a um estatuto único e
intemporal, transmitindo-lhes assim um novo significado que não deixara
indiferente qualquer um que o testemunhe.
Este ícone cinematográfico,
co-escrito pelo escritor e inventor britânico Arthur C. Clarke, apresenta como
ideia central a evolução da humanidade enquanto espécie, introduzindo como catalisador
desta a presença de um misterioso monólito, um artefacto de origem desconhecida
que acompanha e incita os grandes passos evolutivos da humanidade. O filme
inicia a sua acção milhões de ano no passado aonde acompanhamos a humanidade
ainda como espécie primitiva, e transfere-a de seguida para as viagens
espaciais no final do séc. XX. Considerado um dos filmes de mais difícil
compreensão da história do cinema e de caráter altamente subjetivo, Odisseia no Espaço (nome em português) encontra-se
assim repleto de simbologia muita da qual sublinhada pela música que a
complementa.
A emblemática abertura na qual se apresenta o título principal é para muitos uma das cenas mais memoráveis de todo o filme. Esta é musicada com a introdução de Also Sprach Zarathustra, um poema sinfónico de Richard Strauss, que ficou para sempre conhecida na memória do público como o “Tema de 2001”. Caracterizada pelo seu carácter grandioso, marcado por uma progressão musical ascendente, a música remete-nos para um sentimento de revelação e conquista que serve como exposição para uma jornada única, sendo que a sua utilização tanto no início do filme, como em cenas chave nos grandes momentos de evolução, tem também a ver com a própria origem da obra musical. Esta é inspirada no livro homónimo de Nietzsche, que explica a doutrina do super-homem, uma associação de ideias extra-musicais que facilmente conseguimos relacionar tanto com a evolução do primata para homo-sapiens, no momento em que este utiliza pela primeira vez um osso como utensílio, como com a eventual evolução para criança-estrela já no final do filme.
Quando viajamos ao passado
no segmento intitulado “The Dawn of Man” testemunhamos o primeiro aparecimento
do monólito, no seio de uma comunidade de homens primitivos. Perante tão
estranho acontecimento os primatas reagem com grande agitação, inicialmente
assustados e receosos mas rendendo-se rapidamente em admiração ao misterioso
artefacto tocando-lhe com as suas próprias mãos. Toda esta cena é acompanhada
por um excerto musical do Requiem de György Ligeti, um compositor do séc. XX cuja a
obra era ainda recebida com algum desconforto pelo público da época, sendo este excerto musical dominado por um ambiente misterioso, aonde um coro atonal
e dissonante se torna capaz incutir na audiência o sentimento de estranheza e
receio que os próprios primatas sentiram ao testemunhar o aparecimento do monólito, podendo-se sublinhar que o próprio crescimento na intensidade musical acompanha
a crescente curiosidade dos humanos perante o artefacto, sendo este trecho o que irá então musicar os consequentes
encontros da humanidade com o monólito. Embora nos anos 60 a maioria do público lhes chamaria barulho, os sons
do compositor romeno, usados no âmbito do filme, levam-nos para mundos
completamente novos, e ajudam-nos a aceitar o que os nossos olhos vêem: algo
muito além da fronteira do nosso conhecimento. É nesta forma, de analogia
sinestética, que Kubrick aplicará a música de Ligeti em diversas situações ao
longo do filme. Momentos nos quais estamos diante de coisas que os nossos olhos
não compreendem totalmente.
Após uma rápida viagem
temporal a acção é disparada para 1999, iniciando-se outra das mais queridas
cenas de Odisseia no Espaço. A
audiência depara-se com um satélite a “flutuar” no espaço em torno da Terra e,
subitamente, eis que surge a famosa valsa “Danúbio Azul” de Johann Strauss
acompanhando gigantescas construções numa delicada dança espacial que se
prolonga num misto de beleza cómica, criado pela noção de ver máquinas tão grandiosas a
bailarem banalmente de forma tão graciosa, durante cerca de seis minutos. E é
nesta banalidade que reside outros dos aspetos curiosos deste segmento. O
"Danúbio Azul", assim como outras peças de música clássica dita
ligeira, é-nos bombardeado nos aeroportos, elevadores, salas de espera, um
pouco por todo o mundo. A música sugere-nos também desta forma a vulgaridade
das viagens espaciais no futuro de Kubrick e Clarke, algo que é sublinhado pelo
facto do próprio passageiro de uma viagem espacial adormecer durante o voo,
sendo que a maravilhosa visão do espaço já não o surpreende.
Após a desconcertante e extenuante
viagem que Odisseia no Espaço nos proporciona,
eis que é também ao som de “Danúbio Azul” que rolam os créditos finais. Após esta
extenuante odisseia iniciamos assim, de forma descontraída, a viagem banal para
as nossas casas.
"2001: A Space Odyssey", indiscutivelmente um dos maiores marcos da história do cinema, revela-se assim não só como um exemplo inspiratório da forma como seriam
feitos e apreciados os filmes de Ficção Científica, mas também da forma de como
excertos de música clássica seriam harmonizados com o cinema desde então.
Uma verdadeira Odisseia Musical.
Miguel Dias Real Oliveira - a60246